Reportagem: Giovanna Fantinato
“Você vai se arrepender” ou “assim não vai segurar marido, você está sendo egoísta” são frases que costumam importunar as mulheres antes mesmo dos primeiros fios brancos despontarem na cabeça. Não há como negar, a imagem da mãe é uma das mais fortes na cultura popular. Está no imaginário.
O arquétipo da “Grande Mãe”, segundo o psicanalista Carl Jung, é um elemento primordial nas relações humanas. Prova disso são as inúmeras figuras femininas representadas em diferentes culturas, incluindo Deméter, a deusa da agricultura na mitologia grega; Frigga, considerada a deusa-Mãe na mitologia nórdica e, claro, a mais conhecida, a Virgem Maria. Todas representam a grandeza da maternidade. Mas será que ser mãe realmente é “padecer no paraíso”?
Márcia* ri secamente ao ouvir a pergunta. “Nem de perto, só um homem mesmo para falar isso”, ironiza, em referência a Coelho Neto, autor da famosa frase que virou ditado popular. Com 29 anos, Márcia cuida dos dois sobrinhos, seu modo de ajudar a irmã, Beatriz*, que passa o dia no emprego. Enquanto concilia o trabalho remoto e os cuidados com as crianças, ela ressalta o cansaço do dia a dia.
“Nunca quis e agora tenho certeza de que não quero ser mãe; não me leve a mal, eu amo os meus sobrinhos, mas a função simplesmente não é para mim”. A afirmação, no entanto, não agrada muito a mãe, Sueli, de 61 anos. “Ela diz que sou nova e que vou mudar de ideia se me casar, mas nunca tive vontade, além de não me identificar com o papel de mãe”, reafirma Márcia.
Muito se discutiu a respeito da autonomia e dos direitos da mulher sobre o próprio corpo. Um sinal disso é que é cada vez mais comum encontrar mulheres que decidiram não aderir à maternidade, por diferentes razões. Algumas alegam que preferem focar na carreira, outras não trocam a liberdade pela função, enquanto muitas só sentem "que não nasceram para o papel".
A discussão não é de agora, no entanto. No início da década passada, o movimento Geração NoMo (Not Mothers, "não mães'', na tradução literal) se espalhou rapidamente pelo continente europeu. Apesar de desaparecer na mesma velocidade em que chegou, a bandeira continua a mesma: dar voz às mulheres que não são e não pretendem ser mães.
Ainda que a discussão caminhe para garantir cada vez mais o poder de decisão feminino, permanecem as expectativas sobre as escolhas das mulheres, sobretudo no que diz respeito ao papel materno.
Pelos bons costumes
Se você é mulher e está entrando na casa dos “30 e poucos anos”, provavelmente escutou amigos, familiares ou até conhecidos perguntando se já ouviu as badaladas do relógio biológico bater à porta. Patrícia Mueller da Costa tem 42 anos e diz que costuma ser muito questionada ao dizer que não quer ser mãe. “Durante muito tempo, passei por pressão tanto por parte da família do meu marido, quanto da minha, para que cedesse e tivesse filhos. Mesmo ao saber que o assunto me irritava, porque era uma cobrança constante, as pessoas não tinham o menor pudor em insistir”, relembra.
Com medo de engravidar, Patrícia decidiu colocar DIU. A tarefa, no entanto, não foi nada fácil. Em um ano, passou por 15 ginecologistas até achar uma que aceitasse fazer o procedimento em uma mulher de 23 anos, à época. “Certa vez, após eu dizer que não queria ter filhos, a médica me disse que não colocaria o DIU e justificou que não teria problema se eu engravidasse, já que era casada. Minha vontade foi totalmente ignorada”.
Hoje, Patrícia é psicóloga e atende várias mães, tanto no Sistema Público de Saúde quanto em consultório particular. No trabalho, escuta muitas histórias de mulheres que cederam à pressão social da maternidade.
Atendi uma mulher que tinha convicção de que não queria ser mãe. Um dia, ela se apaixonou loucamente por um homem, que tinha o sonho de ser pai. Com o passar do tempo, acabou cedendo e engravidou. Assim que o bebê nasceu, ele decidiu se separar porque descobriu que não tinha vocação para ser pai. No fim, a mulher ficou sozinha com a criança.
Segundo a historiadora e coordenadora do Grupo de Trabalho Estadual de Estudos de Gênero da Associação Nacional de História, Georgiane Heil Vásquez, a função da maternidade ainda é enxergada, em geral, como um papel santificado. "A noção de que a mulher só é completa quando for mãe nasceu, principalmente, do discurso religioso, com a imagem da Virgem Maria”, afirma.
O papa Francisco afirmou durante uma audiência geral no Vaticano, em 2015, que não ter filhos é uma "escolha egoísta", já que, com eles, “a vida rejuvenesce e ganha energia". No campo religioso, no entanto, vale lembrar que a maternidade como algo sagrado já é esperado. Os âmbitos médico e político também se apropriaram da campanha pró-maternidade.
Em 2014, por exemplo, o então ministro da Fazenda da Austrália, Peter Costello, fez um discurso estimulando que as mulheres tivessem filhos pelo “bem do país”, devido à baixa taxa de natalidade e ao aumento do custo das aposentadorias. Em seu discurso, Costello pedia: “Um [filho] para a mãe, um para o pai e outro para o país. Vão para casa cumprir seu dever patriótico esta noite”.
No Brasil, o dever feminino com a maternidade existe desde o período colonial, quando o Estado português se preocupava em povoar o país. O discurso também foi corroborado pela comunidade médica por anos. Vásquez explica que as faculdades de Medicina na virada do século 19 para o século 20 acreditavam que o Brasil poderia passar por um vazio demográfico e reforçavam a importância da contribuição das mulheres com a nação.
Quando não podiam ter filhos por questões biológicas, elas eram vistas como doentes, anormais e ganhavam fama de que eram infelizes. “Se voluntariamente escolhiam não ser mães, é bem comum encontrar discursos médicos que falam claramente que elas eram egoístas, que só se preocupavam com o corpo e que eram vaidosas, perigosas e incompletas”, afirma.
Este imaginário, no entanto, não é de agora, mas de séculos atrás. Na Antiguidade, acreditava-se que o útero era um ser "à parte" e que se movimentava no corpo, causando a sufocação dos outros órgãos. Platão, por exemplo, afirmava que o útero tinha o "desejo de conceber filhos". Assim, segundo ele, o útero de mulheres estéreis ou que não quisessem ser mães ficariam irritados, levando à obstrução das passagens de ar e, consequentemente, à confusão mental. Nasceu daí, o transtorno de histeria, que do grego (hystéra), significa útero.
Séculos depois, Freud dedicou-se a pesquisar a doença mais a fundo. Em “Estudos sobre a histeria”, o pai da Psicanálise afirma que a origem do problema seria um trauma sexual ocorrido na infância da vítima. Além disso, Freud também notou que a rotina de cuidados com a casa e com outras pessoas, como filhos ou marido, foi o fator principal encontrado em todas as mulheres que apresentavam sintomas histéricos, que incluíam paralisia, confusão mental, múltipla personalidade e apatia. "Acreditava-se que a histeria poderia se potencializar caso a mulher não fosse mãe, pois ela passaria por uma suposta tristeza e melancolia por não ter um filho” explica Vásquez.
Atualmente, ainda que a escolha pela maternidade seja uma opção, nem sempre foi assim. A socióloga Marlene Tamanini, vice-coordenadora do Núcleo de Estudos de Gênero da UFPR, explica que antes das reivindicações da segunda onda feminista, na década de 1960, uma mulher não podia ter uma relação só por prazer, posto que sua vida sexual era regrada por um conjunto de práticas morais e religiosas. "As casadas ainda tinham que se confessar com um padre quando se negavam a fazer sexo ou ter mais filhos com o marido", conta. A negativa da mulher na hora de uma relação sexual fazia, muitas vezes, o marido acreditar que podia ser alvo de uma traição.
Revolução sexual
O que elas pensam sobre a maternidade?
O ponto de virada ocorreu na metade do século XX, com a introdução dos métodos anticoncepcionais. As mulheres passaram a ter maior controle não só da quantidade de filhos, mas também quando e se gostariam de ser mães. Tamanini explica que foi uma revolução, uma vez que separou o sexo do simples ato de reproduzir.
No entanto, o anticoncepcional era mal visto pelo marido e também pela Igreja, o que fazia com que muitas mulheres escondessem a pílula em casa e a tomassem em segredo. Antes dos anticoncepcionais, as mulheres que quisessem evitar uma gravidez só podiam praticar o coito interrompido. Vale lembrar que o grupo que tinha acesso à pílula era majoritariamente burguês e, principalmente, branco.
Com a possibilidade de adiar a maternidade, muitas mulheres que antes ficavam responsáveis apenas pelo lar, no âmbito privado - geralmente brancas e de maior estabilidade econômica - começaram a encontrar espaço no mercado de trabalho. De lá para cá, esperar para ser mãe virou tendência. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o número de mulheres que decidem ser mães após os 30 anos é cada vez maior. Entre 2009 e 2019, aumentou em 63,6% o número de mães na faixa etária entre 35 e 39 anos. Além disso, a alta no número de partos entre os 40 e 44 anos foi de 57%.
A socióloga israelense Orna Donath conversou com 23 mulheres mães, de diferentes gerações, para reunir depoimentos sobre as suas experiências com a maternidade. A pesquisa resultou no livro Mães arrependidas, lançado no Brasil pela editora Civilização Brasileira, em 2017. Entre os vários relatos que envolvem situações de cansaço e privação de lazer, todas as mulheres ressaltam o mesmo sentimento: arrependimento.
"Eu chego do trabalho às 17 horas, sem muita energia. Quero sentar e ler um livro. Ficar deitada olhando para o teto. Mas não posso e é isso que me frustra. O sofrimento começa já às 14 horas, quando sei que em algumas horas vai começar a minha segunda jornada. E se minha mãe não está comigo, estou sozinha com ele [o filho], sou a única lá para correr atrás dele, e isso me deixa nervosa. Travo uma luta diária com esses sentimentos", diz Jasmine, uma das entrevistadas de Donath.
Uma pesquisa alemã de 2016, realizada pela YouGov, empresa de pesquisa de mercado na internet, mostra que de 1,2 mil participantes, 8% lamentavam ter se tornado mães. Ainda que o índice seja pequeno, Donath acredita que o número pode ser maior, já que várias mulheres se recusam a dar depoimentos - ou até mesmo confessar - o arrependimento materno.
Estado de graça
“Eu senti como se um caminhão tivesse me atropelado, não anotei a placa e perdi o caminho de volta para casa”. Essa foi a sensação de Karla Tenório, atriz carioca, quando percebeu que virou mãe, aos 28 anos. Ela explica que nunca quis a maternidade para si. Antes, ao ser questionada, explicava que não tinha intenção, nem "personalidade" para a função.
Foi em uma viagem para a Índia que tudo mudou. Há dez anos, durante uma meditação na beira de um rio considerado sagrado na região do Himalaia, Karla teve uma visão e sentiu que deveria ficar grávida. Durante a gestação, estava no que chamou de "estado de graça". O termo é frequentemente utilizado para designar o momento em que a gestante encontra a felicidade real, pura.
Estudou cromoterapia – uso das cores como meio terapêutico para equilibrar as "energias" do corpo –, preparou-se com sua amiga doula para fazer o parto em casa, escreveu uma música para que o bebê nascesse ouvindo as palavras de afeto feitas especialmente para ela. Karla decidiu dar à menina o nome Flor Inaiê, um sinal de que “nasceria iluminada assim como Iemanjá”, entidade da umbanda que serviu como inspiração do nome. "Nesse ponto, já nem lembrava mais que um dia não quis ser mãe. Era dali para a glória", lembra. “Após o parto, no entanto, me senti traída.”
Mulher mãe, mulher completa
Os problemas começaram no parto, quando o bebê estava na posição errada e a doula precisou usar um rebozo - uma espécie de xale utilizado para "ajustar" a criança na barriga da mãe. “Quando saiu a cabeça, é como se eu tivesse tido um destamponamento na visão, como se antes estivesse tudo fora de foco e, de repente, eu passasse a enxergar. Pensei 'me arrependi, não tenho como voltar atrás. Foi como uma pontada de 'minha vida acabou'”.
Após desmaiar de cansaço, Karla acordou horas depois, pensando no pesadelo que acabara de ter. Foi quando viu sua mãe carregando um bebê que a ficha caiu. O sonho ruim era, na verdade, para o resto da vida. “Não tem nada que exija mais de uma pessoa do que a maternidade. A relação mais próxima é a de filha com mãe, mas mesmo assim, está na crença da sociedade que um filho deve sair de casa, seguir seu caminho. Mas a mãe não pode. Ela não pode tirar folga ou férias, é para sempre”.
O sentimento de traição veio logo após o parto, já que, segundo ela, não havia ninguém durante a gestação para dizer que a maternidade não era como nas novelas ou nos filmes.
Maternidade real
Amamentação, choros incontroláveis, banhos de até dois minutos. Os primeiros anos foram, o que Karla chamou, um filme de terror. De um lado, estava a necessidade de estar 24 horas por dia disponível para a criança. Do outro, a pressão social e cultural para ser perfeita. “As mães que não conseguiram exercer a sua individualidade e que estão presas a essa ideia idealizada de Virgem Maria precisam desmistificar isso. Não é para ninguém se ‘acabar’ por outra pessoa, são dois seres humanos”.
Assim como os vários relatos apresentados no livro de Orna Donath, Karla não hesita ao ressaltar o amor pela filha. O ódio, segundo ela, é do modelo socialmente construído de maternidade.
A minha relação com ela é incrível, somos muito parceiras e amigas. Como mãe, é complicado não poder voltar atrás e recuperar toda a liberdade que tinha antes. E mesmo quando a criança cresce e vira adulta, a sociedade acredita que a essa mãe é responsável por este ser humano. É a própria Virgem Maria, né? Então, eu já sei que vou seguir o resto da minha vida servindo à minha filha, obrigatoriamente.
- Karla Tenório
Psicose puerperal
Dias após o parto, Karla desenvolveu psicose pós-parto, doença considerada grave e pouco frequente, podendo atingir uma em cada mil mulheres que estão no período perinatal. Além de sinais como insônia, ansiedade, agitação, alucinações, depressão e variação de humor, a mulher pode desenvolver comportamentos autolesivos ou que causem graves danos ao bebê. "A psicose puerperal se apresenta como uma verdadeira cisão da realidade; há uma ruptura entre o que é certo e o errado, desconexão da realidade, quebra de regras, falas desconexas e até confusão de identidade", explica a psicóloga puerperal Nayara Macedo.
Mesmo sendo raro, estudos indicam que alguns perfis têm mais chances de desenvolver a doença, incluindo histórico pessoal ou familiar de bipolaridade, complicações periparto, trabalho de parto prolongado, privação de sono durante o processo e até mesmo características sociais, como ser mãe solo ou estar em vulnerabilidade social.
Macedo explica que mesmo nos casos em que a mulher deseja ser mãe, ao se deparar com sentimentos que não eram esperados ou que fogem daqueles construídos socialmente – como as sensações de realização e completude –, a mulher pode passar por uma confusão emocional. Ao perceberem que não tiveram o “instinto materno” imediatamente após o parto, muitas sentem culpa e desenvolvem conflitos internos.
Com isso, podem rejeitar, evitar pegar no colo ou até conhecer a criança. “Uma gestação indesejada, que por si só já carrega medos, inseguranças, cicatrizes e dores, pode causar grande impacto psíquico na mulher, e a depressão ou psicose pós-parto são duas das principais consequências”, afirma Macedo.
Mesmo com a gravidade do quadro clínico, a tendência é que a mulher volte ao estado psicológico normal após o primeiro mês do parto. Com a psicose puerperal, Karla tinha, por exemplo, sentimentos e atitudes compulsivas para ser a mãe perfeita. Ela conta que nunca teve babá, deixou de aceitar papéis em novelas e peças devido aos sentimentos de culpa. "Eu tenho guardado, por exemplo, um caderno em que anotava quantos minutos a minha filha mamava em cada seio", lembra.
A cura em forma de arte
Com o passar dos anos, Karla decidiu conversar com a filha Flor sobre os sentimentos que nutria. Certo dia, ao falar sobre o seu arrependimento materno e as complicações da maternidade, Karla foi surpreendida com a resposta simples e direta: “Eu sei disso, mamãe. Você acha que eu não vejo?” Ela conta que a sensação de alívio foi a mesma que a de confessar um pecado a um padre. Karla confirma que Flor foi a primeira pessoa a saber e entender o seu arrependimento materno.
Decidiu unir seu ofício de atriz com a vontade de ampliar a discussão e ajudar outras mulheres. Foi nesse momento que nasceu a ideia de criar a peça teatral Mãe arrependida. Segundo a sinopse, o espetáculo é um convite para conhecer o lado sombrio e oculto da maternidade.
Engana-se quem pensa que a filha fica de fora das discussões sobre o assunto. Ao colocar a peça no ar, Karla viu suas redes sociais rapidamente ganharem milhares de mensagens de ódio. Segundo ela, o desejo de desistir foi inevitável. "Mãe, para de fraqueza, nadou tanto para morrer na praia? Aguenta, seja forte”, aconselhou Flor. Poucos meses após o lançamento, a página oficial da peça já conta com mais de 20 mil seguidores.
No fim, Karla questiona a visão que teve na Índia. Até hoje, não sabe identificar se foi algo divino, que “deveria ser”, ou se foi uma “dominação” da maternidade compulsória pregando uma peça em sua cabeça. “No fundo, acho que foi um pouco dos dois. Demorei dez anos para sair daquela sensação de que estava perdida após ter sido atropelada por um caminhão. Hoje, sinto que estou ancorada no meu próprio corpo, seguindo o meu propósito de vida, mais corajosa e forte”.
Desde os 8 anos, a cearense Patrícia Marx já desconfiava que não queria ter filhos. Brincadeiras com bonecas ou bebês de brinquedo nunca chamaram sua atenção. Na adolescência, desenvolveu tanto medo de engravidar que praticou abstinência sexual. Na casa dos 20 anos, casou-se com um homem que queria ser pai. Mesmo com expectativas diferentes, tentou levar o relacionamento. Até o momento em que descobriu que o marido escondia seus anticoncepcionais.
"Um dia a minha psicóloga perguntou se eu não queria ser mãe. Logo fiquei na defensiva, respondi que não queria falar sobre aquilo, porque achei que seria julgada. Então, ela simplesmente disse que está tudo bem eu não querer ser mãe. Foi nesse dia, aos 28 anos, que finalmente descobri que eu não era uma pessoa amarga ou ruim por isso."
Com 28 anos, procurou um método contraceptivo definitivo. Ao descobrir que a laqueadura tem taxa de reversão que varia entre 0,5% a 1% – maior que o uso do DIU – optou pela salpingectomia, procedimento mais definitivo do que laqueadura, que consiste na retirada das trompas de falópio. Em busca da cirurgia, encontrou um processo que, além de burocrático, foi marcado por preconceito. "Fui em muitos médicos para conseguir autorização para conseguir fazer o procedimento, mas sempre ganhava uma negativa logo de cara, acompanhada de piadas e comentários bem desconfortáveis", diz Patrícia.
Atualmente, a esterilização voluntária - por meio da Lei n.º 9.263/96, de planejamento familiar - só é permitida nas seguintes situações: em mulheres e homens com mais de 25 anos ou, pelo menos, com dois filhos vivos. Além disso, é necessário o consentimento do marido ou da companheira.
A dificuldade encontrada por Patrícia é a mesma de várias outras mulheres e, segundo ela, isso é uma consequência da falta de informação a respeito do assunto, tanto dos cidadãos quanto dos profissionais da saúde.
Foi pensando nisso que criou a página “Laqueadura sem filhos sim”, no Instagram. Formada em Direito, a advogada decidiu usar seu conhecimento da lei para ajudar outras mulheres. “Na internet nós não encontramos muitos materiais explicando os direitos reprodutivos fundamentais. Com isso, fiquei pensando: ‘Se eu, que tenho acesso às leis, estou com dificuldade para entender, para uma mulher em vulnerabilidade será ainda mais difícil”, conta.
O perfil criado para levar informações jurídicas e compartilhar relatos de outras mulheres conta atualmente com mais de 60 mil seguidores. Marx explica que o objetivo principal é analisar a lei e fiscalizar se ela realmente está sendo cumprida. “Quando o direito não está garantido, só se dá uma alternativa à mulher, que é a gestação. Se fossem dadas todas as informações e a lei fosse seguida, isso evitaria muita gravidez indesejada e até abortos ilegais, que colocam em risco a vida de muitas mulheres”.
Ágatha* tem 21 anos e decidiu fazer salpingectomia – a remoção das tubas uterinas – após conhecer a página “Laqueadura sem filhos sim”. A decisão, no entanto, a rodeia desde pequena. Incômodo era o que sentia quando, na adolescência, lhe perguntavam como chamaria seus filhos “no dia em que se tornasse” mãe, e não "se" fosse mãe.
"As pessoas dizem que laqueadura e salpingectomia são escolhas definitivas, mas a questão é que ter filhos também é. E nós temos que pensar: vou viver a vida que eu decidi ou a vida que os outros decidiram por mim?”. Para ela, ouvir que nunca encontrará o amor verdadeiro sem ter filhos, é mais uma forma de pressão psicológica para que, no fim, decida pela maternidade.
Para responder à clássica pergunta "quem vai cuidar de você na velhice?", Ágatha relembra a trajetória de Bertha Lutz, cientista, política e ativista feminista. Um ano antes de sua morte, doou boa parte de seus pertences históricos, incluindo medalhas, roupas, livros e anotações para o Museu Nacional, no Rio de Janeiro. Feito isso, ingressou em um asilo, no qual recebeu todos os cuidados necessários até o dia de sua morte.
"O que eu digo é que ter filhos não é ‘um seguro’ de que ele vai dispor do seu tempo para cuidar de você, mesmo que seja a própria mãe. Por outro lado, não ter filhos não quer dizer que você vai ficar desamparada e solitária. É preciso lembrar que não ser mãe não te faz menos mulher, não te faz uma pessoa insensível. É simplesmente uma escolha”, diz.
*Os nomes das mulheres que falam na reportagem são fictícios.
Salpingectomia:
Consiste na remoção das trompas de Falópio, região em que o óvulo se encontra com o espermatozoide. Para ser totalmente eficaz contra gravidez, é preciso realizar a chamada salpingectomia bilateral. No procedimento unilateral (retirada de apenas uma das tubas uterinas), a paciente continua fértil.